O LIVRO DOS PEIXES
Friday 21 June 2013
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Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe
encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada,
quando a certa altura começou a tornar-se negro a partir – digamos – de dentro.
Era um nó negro por detrás da cor vermelha que insidioso, se desenvolvia para
fora, alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o
pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.
O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava
e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer
da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema
constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a
saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo
estabelecido entre o peixe e o quadro através do pintor; 2º - peixe, cor preta,
pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na
primitiva fidelidade do pintor.
Ao meditar acerca das razões por que o peixe mudara de cor precisamente na
hora em que o pintor assentava a sua fidelidade, ele pensou que, lá dentro do
aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer
notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da
imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de
fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo.
..
"Os peixes são também números e tremem de subtileza à volta do lugar ameaçado."
(Herberto Hélder, in Vocação animal, D.Quixote)
“Comecei a preocupar-me, vejam só, com essa destruição dos peixes, esse atrito de amor que estávamos cegamente criando, e imaginei o mundo futuro como uma mesmice estéril em que todo o mundo havia comido tanto peixe que não restava mais nenhum, e em que a Ciência conhecia absolutamente todas as espácies e filos e géneros, mas que ninguém conhecia o amor porque ele havia desaparecido junto com os peixes.”
(Richard Flanagan
in O
livro dos Peixes de William Gould, Companhia da Letras,p.201)
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